
Você já reparou que, ao pedir uma garrafa de vinho em um restaurante, o sommelier serve uma pequena dose em sua taça antes de servir os demais? Até aí, tudo certo – a etiqueta manda que o anfitrião prove antes. Mas e quando é o próprio sommelier quem dá o primeiro gole? Calma: isso não é privilégio, nem vaidade. É história e também responsabilidade.
Da Idade Média aos restaurantes modernos

A palavra “sommelier” tem origem no francês antigo sommier, que designava o condutor de animais de carga. Na época das cortes medievais, esse profissional era responsável por transportar as provisões, entre elas, o vinho, e garantir a segurança dos alimentos e bebidas consumidos pelos nobres.
Com o tempo, o cargo evoluiu, e o sommelier passou a provar o vinho antes que o rei o fizesse, para garantir que não estivesse envenenado. Sim, você leu certo. No passado, a profissão envolvia risco de vida: se houvesse veneno, era ele quem sofreria as consequências primeiro.
Do veneno ao serviço de excelência
Felizmente, o perigo de envenenamento ficou no passado. Mas a prática de provar o vinho antes de servi-lo permaneceu — agora, com outro objetivo: assegurar que o vinho esteja em perfeitas condições.

Hoje, o sommelier prova o vinho para identificar possíveis defeitos, como aromas estranhos (caso do temido bouchonné, causado por contaminação por TCA), oxidação (que lembra maçã passada ou verniz) ou redução extrema (aquele cheiro de ovo podre, por exemplo). Ele também verifica a temperatura de serviço e o estado geral do vinho.
“A prática é prevista pelas regras da ASI — Association de la Sommellerie Internationale. O sommelier deve provar o vinho antes de servir ao cliente, justamente porque tem preparo técnico para identificar eventuais falhas. Caso haja algum defeito, ele pode intervir imediatamente e substituir a garrafa”, explica Claudia Oliveira, vice-presidente da Associação Brasileira de Sommeliers do Distrito Federal (ABS-DF). Segundo ela, a regra é ensinada nos cursos da entidade. No entanto, Claudia reconhece que muitos consumidores brasileiros ainda estranham a prática. “Mas, em nível internacional, isso é não apenas comum como recomendado”, afirma.

O respeitado Court of Master Sommeliers, por exemplo, orienta que o sommelier, diante da suspeita de defeito, pode provar o vinho até mesmo fora da vista do cliente. O intuito é um só: evitar que o consumidor tenha uma experiência negativa — e, acima de tudo, constrangedora.
Bom senso à mesa
Quando o assunto são vinhos antigos ou raros, o cuidado precisa ser ainda maior. É o que explica Leonildo Santana, sommelier do restaurante Dom Francisco, um dos mais tradicionais de Brasília.

“Em casos assim, o papel do sommelier vai além da técnica e exige sensibilidade, conhecimento e, principalmente, bom senso. A garrafa pertence ao cliente, que tem todo o direito de decidir quem irá provar. Mas quando há risco real de o vinho estar comprometido, como acontece com rótulos muito antigos, é prudente que o sommelier prove uma pequena quantidade, sempre com discrição e profissionalismo”, ressalta.
Para Leonildo, a intenção jamais é tomar o protagonismo da experiência, mas protegê-la. “Provar o vinho antes é uma forma de zelar por aquele momento especial. Ninguém quer que uma ocasião rara seja marcada por um vinho defeituoso.”
Um gesto de cuidado — não de vaidade
O livro Wine and Food Handbook, referência em escolas de formação de sommeliers, reforça esse papel protetor do profissional: “Ele é responsável por garantir a integridade sensorial da bebida até o momento em que ela chega à taça do cliente”.

Ou seja, quando o sommelier prova o vinho antes de você, ele está atuando como guardião da sua experiência. Para Yandy Justiz, eleito o melhor sommelier de Brasília pela Revista Encontro e defensor dessa prática, esse gesto é acima de tudo uma demonstração de respeito e compromisso com a excelência. “Nosso papel é proteger a taça do cliente. Não se trata de vaidade, mas de garantir que o vinho esteja como deve estar: perfeito para ser apreciado”, afirma. Em outras palavras, o primeiro gole é técnico, cuidadoso — e sempre em favor do cliente.






