Texto: José Filho Anjos (Gerente Comercial da Decanter Bsb) / Edição: Etiene Carvalho
Os sommeliers costumam receber de presente nesta época do ano a difícil tarefa de eleger vinhos para harmonizar com a nossa típica ceia de natal. Entre os pratos mais emblemáticos, sem dúvida, o peru assado é o mais onipresente, embora as formas de prepará-lo variem de região para região, ou em cada família.
Peru assado simples – A ave em si assada não é desafio para nenhum enogastrônomo, seus sabores de caráter marcado, ainda que não particularmente intensos, com boa hidratação se a cocção for pontual e uma leve tendência ao doce, convidam à presença de tintos de média estrutura, com equilíbrio pautado pela presença de taninos bem resolvidos e acidez agradável, já com alguma complexidade, sem excesso de calor alcoólico. Penso primeiramente num Pinot Noir, melhor se for do Velho Mundo, como um Borgonha.
Outras opções – Os tintos do Douro, não os mais poderosos e barricados, também se mostram muito bem com a macia carne do peru, e na vizinha ibérica, são muito recomendáveis os tintos jovens e crianzas da Rioja e de Navarra. Na Itália as alternativas apontam mais para o Norte, como um bom Valpolicella Classico ou um vibrante Barbera da escola mais tradicionalista. Vinhos brancos não estão excluídos, um bom Borgonha é uma opção sensata.
Peru assado com acompanhamentos – Os óbices começam a aparecer quando surgem os acompanhamentos do peru, que vão de castanhas cozidas ou glaçadas, frutas frescas e assadas, geleias, fios de ovos, farofas com frutas cristalizadas e muitas outras iguarias de tumultuado diálogo com o vinho. Estes sabores adocicados desenvolvem uma parceria interessante com o peru assado, mas deslocam o eixo de harmonização dos tintos do Velho para o Novo Mundo, logicamente com algum raio de manobra. A harmonia agora exige mais do seu autor e restringe-se mais aos vinhos dotados de equilíbrio plenamente voltado à maciez do álcool e da glicerina, triunfantes sobre a dureza dos taninos e da acidez. A explicação técnica é que estas frutas e castanhas estão na zona de transição entre a “tendência ao doce”, que aceita um vinho simplesmente com bom frescor, e a “doçura” propriamente dita, que requer um vinho já no mesmo nível de sensação saporífera de doçura.
Os tintos clássicos europeus, com sua tendência de equilibrar para o lado da dureza ficam ainda mais duros e às vezes até magros, acídulos e metálicos no confronto com estes adereços do peru, ao passo que alguns tintos californianos, argentinos, chilenos e australianos de Zinfandel, Syrah, Pinot Noir ou Malbec, com dotes particulares de maciez alcoólico-glicérica, carregam bem estes sabores. No que tange aos brancos, a presença das frutas clama pela untuosidade e exuberância de um Chardonnay ou de um Viognier arquétipos do Novo Mundo, e certamente um Pinot Grigio ou um Gewurztraminer da Alsácia não jogariam para perder.
Fora de propósito – Espumantes secos estariam fora de propósito neste contexto de tamanha doçura. Quem não abre mão, todavia, das bolhinhas neste momento celebrativo tão especial, pode desarolhar a sua Champagne safrada escondida no fundo da adega antes, de forma a preparar os sentidos para ceia e estourar algumas garrafas de Asti Spumante com as sobremesas, este sim a própria essência do natal: tenro, doce, alegre e familiar.