A vinícola Santa Maria, no sertão pernambucano, é aquela onde foram gravadas as cenas de “Amores Roubados”, minissérie exibida na TV Globo no início deste ano. O enólogo português João Santos (foto) é um dos diretores da vinícola nordestina. Formado em Agronomia e com experiência na Global Wines (Grupo Dão Sul), é ele o responsável pelo projeto Rio Sol da empresa – que produz vinhos inovadores e ousados do Vale do Rio São Francisco, comercializados no Brasil e exportados para mais de 20 países. Nessa entrevista, ele esclarece algumas questões com detalhes, como a produção contínua de uvas naquela região semi-árida e a polêmica colheita de uvas realizada duas vezes ao ano no local. Confira:
Blog – A produção de vinhos finos no Vale do São Francisco não é milagre. Em linhas gerais, o que é feito para driblar a alta temperatura, o excesso de luz solar e a falta de chuva?
João Santos – A primeira coisa a falar é que para as plantas funcionarem necessitam de luz, sol, calor e água. Por esse motivo, em climas temperados, as plantas hibernam e não funcionam no inverno. A produção de uvas em climas temperados se faz durante a época quente. Por exemplo, no Douro e no Alentejo facilmente têm-se temperaturas de 45ºc e são regiões com belíssimos vinhos. A região do Vale do São Francisco é uma região Tropical (paralelo 8º), muito próxima da linha do equador e, portanto, possui condições (sol, luz, calor e água) para as plantas funcionarem durante todo o ano. Com estas condições climáticas é possível produzir uvas, ou qualquer outra planta, durante o ano inteiro. Cabe a cada empresa escolher a melhor época de produção. No nosso caso, adotamos o ciclo contínuo que aproveita a mão-de-obra especializada dos nossos funcionários. Para isso, criamos equipes de poda, trabalhos em verde e colheita; cada equipe faz o seu trabalho e, assim, podamos todo o ano e podemos colher uvas durante o ano todo também. Não queremos driblar o clima, mas sim, retirar o melhor dele. Este foi o clima que escolhemos para implantar a nossa vinícola, por ter as condições que achamos ideais para o nosso projeto.
Blog – Essa produção durante todo o ano não é prejudicial à videira?
João Santos – Talvez a melhor forma de explicar seja a seguinte: se você plantar um lote de milho em janeiro, outro em fevereiro, outro em março, você vai colher o milho todo na mesma época? Claro que não. Vai ter de respeitar o ciclo da planta. Na verdade, você vai ter milho durante três meses, pois quando acabar a colheita do milho de janeiro, vai começar a colher o que plantou em fevereiro e, depois, o que semeou em março e assim por diante. Com a videira acontece o mesmo. Como a poda acontece todos os meses, a colheita também acontece todos os meses. Quanto às plantas, elas fazem ciclos normais. O que a empresa faz no Vale do São Francisco é diluir o fenômeno de safra e entre safra durante o ano – enquanto algumas videiras hibernam em uma área, independentemente de ser inverno ou verão, em outros locais outras brotam ou são podadas. Dessa forma, é possível trabalhar o ano inteiro com funcionários fixos que vão se revezando nessas respectivas áreas para fazerem seus trabalhos especializados, seja de poda, trabalhos em verde ou colheita. Isso permite produzir vinhos distintos dos climas temperados aos quais o mercado está habituado.
Blog – Existe outros países que adotam este tipo de produção? João Santos – O Brasil é líder nesta tecnologia. Isto se deve à região do Vale do São Francisco ter toda a secura de um deserto (região semi-árida), mas contar com um rio maravilhoso que é o São Francisco. Esta combinação de clima quente e seco e água disponível para irrigação é rara em qualquer parte do mundo.
Blog – Por que no Vale do São Francisco as videiras não hibernam como no resto do mundo sendo possível colher uvas duas vezes ao ano?
João Santos – No resto do mundo as vinhas são produzidas em climas temperados que têm seis meses de verão e seis de inverno. O ciclo das uvas dura mais ou menos 150 dias e ocorre durante o verão, quando a planta tem sol, luz e temperatura. Nos outros seis meses, no inverno, a planta perde as folhas e hiberna. A mesma coisa acontece na caatinga quando as plantas, por falta de água, perdem as folhas e ficam seis meses em hibernação até que volte a chover. Isso não acontece quando levamos essa mesma planta para o jardim e lhe damos água. Nesse caso, ela não hiberna, pois não lhe faltou água. Logo, se uma vinha está em um clima que tem sol, luz, calor e água durante o ano todo, ela não perde as folhas e não entra em hibernação. É o que acontece aqui no Vale do São Francisco. Aqui a planta não hiberna, pois não existe o frio que a obriga a hibernar. Comparo com um urso polar que foi viver em um zoológico de Brasília. Ele vai hibernar? Claro que não. Não existe temperatura negativa para isso, portanto, ele vai se manter em atividade durante todo o ano. A grande diferença é que em virtude disso é possível produzir dois ciclos de 150 dias em cada ano, pelo que é possível tirar duas safras de uva da mesma planta por ano. Isso porque 30 dias após a colheita, as folhas perdem o verde e começam a amarelar e cair. Nesse momento, temos de podar novamente e iniciar um novo ciclo normal (brotação, floração, bagos verdes, maturação, colheita), como na Europa. Se não fizermos isso começam a nascer novas folhas verdes e a planta continua a atividade biológica, pois tem sol, luz, calor e água.
Blog – Como os enólogos de países como França, Itália, Espanha e, até mesmo, de Portugal costumam enxergar isso? Inovação ou Ceticismo?
João Santos – Todos os enólogos do mundo ficam maravilhados e até com um pouco de inveja porque enquanto eles fazem 25 a 30 vindimas na vida, nós fazemos isso em um ano (risos). Todos admiram o nosso trabalho e, quando provam os vinhos, ficam fascinados, aplaudem e elogiam.
Blog – O vinho do Vale do São Francisco pode ser classificado como um vinho típico do Novo Mundo? Por quê?
João Santos – Sim ele pode ser classificado como “novo ‘Novo Mundo’ ”. Esta, inclusive, foi a classificação que deu a renomada crítica de vinhos britânica Jancis Robinson para se referir a uma nova região vinícola dentro no Novo Mundo.
Blog – Jancis Robinson também já qualificou o vinho do Vale do São Francisco como respeitável, moderno e de fácil aceitação pelo mercado. Na prática, como está sendo comercializar esses vinhos no Brasil e no exterior?
João Santos – O nosso vinho é muito bem aceito por todos os que provam. Infelizmente, existem várias pessoas que tiveram algumas más experiências com vinhos brasileiros no passado e não acreditam na revolução que as empresas de vinho fizeram estes últimos 10 anos e que, hoje, já possuímos vinhos de qualidade internacional inquestionável. A prova disso são os 20 países em que se pode encontrar o Rio Sol. Desde o Canadá, Inglaterra, Noruega, Suécia até Portugal. Vale ressaltar também as inúmeras medalhas conquistadas por todos os vinhos brasileiros em prêmios internacionais. Quando vamos a feiras internacionais o estande do Brasil é um dos mais frequentados, mas, infelizmente, dentro do Brasil muitos ainda não descobriram os deliciosos vinhos finos brasileiros.
Blog – Acredita que existe algum preconceito em relação ao fato de o vinho ser produzido no sertão nordestino?
João Santos – A maioria dos degustadores brasileiros tem preconceito ou restrições aos vinhos brasileiros (não, particularmente, aos vinhos do Sertão). Penso que, por ser uma região nova, seja mais fácil conquistar o cliente por este nunca ter tido nenhuma experiência negativa com vinhos da região. Além disso, existe toda a questão da curiosidade para conhecer o produto.Temos surpreendido muitos consumidores.
Blog – No início de 2014, a rede Globo transmitiu a série de TV Amores Roubados, gravada na vinícola Santa Maria, que foi uma grande oportunidade de mostrar para o Brasil o trabalho desenvolvido na região. Alguma coisa mudou depois da minissérie?
João Santos – A minissérie transmitiu o que existe há mais de 40 anos na região e que pouca gente conhecia: lindas paisagens, um rio maravilhoso e a produção de uvas e vinhos numa região encantadora. Ao passar isso na televisão, despertou a curiosidade de muitos e o enoturismo no local aumentou em cerca de 50%. Mas eu acho também que foi muito bom para o vinho brasileiro em geral, pois apareceu adegas modernas, barricas, vinhas bem conduzidas, enfim, a nova realidade das empresas de vinhos finos do Brasil. Diferentemente do que pensa muitas pessoas. Foi uma forma de mostrar como o Brasil está moderno na área de vinhos finos.
Blog – Existe alguma perspectiva para transformar a área em Denominação de Origem?
João Santos – Existe sim. Na verdade, é um processo relativamente fácil, pois não há outra região igual no mundo. A entidade responsável por fazer todo o trâmite legal é a Embrapa semi-árido. Mas, mais importante do que ter uma denominação é a região ter bons vinhos e é por isso que lutamos.
Blog – Além do Sul e do Nordeste, o Brasil está produzindo vinhos no Sudeste e, até mesmo, no Centro-oeste. Como enólogo, qual é a sua opinião a esse respeito? Seria certo afirmar que a tecnologia está superando o terroir?
João Santos – Na verdade, eu acho que o Brasil é o Velho mundo do Novo mundo. É um país que por suas dimensões tem vários biomas, o que permite fazer vinhos diferentes em diversas regiões. Isso deveria ser muito valorizado pelo consumidor, pois é uma riqueza imensa. Santa Catarina, por exemplo, produz vinhos com muita complexidade aromática; a Serra Gaúcha é perfeita para produzir uvas precoces e de alta qualidade, como Chardonnay e Merlot; no Centro-Oeste tive a experiência recente de experimentar o Syrah da região e adorei; no Vale de são Francisco, com sol e luz o ano inteiro podemos fazer ótimos vinhos tintos encorpados bem como vinhos brancos leves e frescos. Com isto só resta dizer: abra a cabeça e abra vinhos brasileiros. Arrisque-se que vai ficar surpreso. Boa degustação!