Há algum tempo, li um artigo bem interessante da sommelière Eliana Araújo, para a Revista Casa e Comida, que me chamou a atenção. Logo no início, o texto dizia: “Assim como no mundo da gastronomia os alimentos recebem uma dose de sofisticação por meio de um suposto “raio gourmetizador”, no mundo dos vinhos os enófilos estão falando em mineralidade de uma maneira tão excessiva, que parecem estar usando um raio semelhante, só que nesse caso um “raio mineralizador”’. Fiquei pensando sobre o assunto um bom tempo e depois de certa pesquisa e reflexão resolvi também escrever sobre o assunto aqui no Blog Vinho Tinto.
Particularmente entendo como mineralidade o sabor/aroma de pedra de isqueiro, de concreto molhado, de petróleo, de gasolina, de grafite e/ou até salino. Ou seja, todo aroma que não pode ser descrito, como frutado, floral, animal ou vegetal. No entanto, há muitos que falam sobre mineralidade querendo apenas traduzir a sensação de frescor e de acidez de um vinho. Paradoxalmente, e pra polemizar o assunto, há muitos químicos que alegam que mineralidade não é um aroma… Aí, com certeza, começa toda confusão com esse termo tão novo no mundo do vinho que nem mesmo um dos maiores mestres da Enologia, Emile Peynaud, chegou a mencioná-lo em seu livro “O Gosto do Vinho”, escrito em 1980.
Gênese dos aromas Minerais
O fato é que realmente existe uma zona nebulosa quando tentamos entender a gênese desses aromas minerais. E muitos sommeliers, enólogos e especialistas acabam tendo uma percepção bem diferente sobre “de onde”, de fato, surgem os aromas e sabores da mineralidade no vinho.
Para o renomado geólogo galês Alex Maltman, autor de dois estudos publicados no Journal of Wine Research, as plantas não são capazes de transformar em aromas os minerais absorvidos no solo, nem as rochas que o compõe têm qualquer capacidade de agregar algum tipo de cheiro ou sabor ao vinho. O elemento mineral na bebida normalmente tem concentrações minúsculas e carece de sabor. “As tentativas de explicar a percepção da mineralidade envolvendo alusões a materiais geológicos são irrelevantes”, explica Alex Maltman em seu estudo científico “Mineralidade no vinho: uma perspectiva geólogica”. Para o estudioso, a noção de que a geologia da vinha tem influência direta no resultado final do vinho, advém de uma noção romântica que tem um bom resultado jornalístico e funciona como uma tática de marketing poderosa, mas é completamente anedótica e de qualquer forma literal cientificamente impossível”, afirma categoricamente.
Revista de Vinhos
Em recente artigo do jornalista André Lallas, publicado na Revista de Vinhos, ele elenca depoimentos de vários produtores que pensam como Maltman, mas também de outros que pensam exatamente o contrário do geólogo. É o caso do austríaco Nikolaus Saahs, da vinícola Nikolaihof, uma das primeiras oficialmente certificadas como biodinâmicas no mundo. “Muitos dos nossos vinhos trazem um forte componente mineral. E isso está diretamente associado ao solo. Tenho plena convicção disso e vou mais longe. Acredito que produtores que não usem aditivos, pesticidas e fertilizantes químicos, tendem a ter videiras mais fortes que sejam capazes de absorver com mais plenitude os minerais presentes no solo. E esta absorção revela-se na hora em que fazemos o vinho, também de forma menos intervencionista, com leveduras indígenas, sem clarificação, colagens ou filtrações”, revela.
No entanto, o mesmo artigo de Lallas expõe a resposta de Maltman a esse tipo de afirmação: “Talvez novas pesquisas específicas com os minerais nutrientes em determinada videira, mesmo sem a menor capacidade de agregar sabor ou aroma, possam cumprir algum papel determinante no caráter final do vinho. No entanto, necessariamente a percepção da tal mineralidade nada teria a ver com a ingestão de minerais, mas sim com a permutação de compostos orgânicos complexos cuja produção ficou a dever-se à presença de compostos inorgânicos específicos. Mas enquanto estas novas pesquisas não forem feitas, tudo não passa de mera especulação. O que é fato consumado é que no estudo fica provado que a percepção da mineralidade – se é que existe – não pode em nenhuma hipótese estar ligada à presença das rochas e ao sabor dos minerais existentes no solo”, conclui.
French Wine Scholar e Mineralidade
Por outro lado, nos estudos do French Wine Scholar, encontrei um trecho que tratava exatamente sobre esse assunto e dizia: “felizmente pesquisas atuais estão fazendo grandes avanços na compravação de uma conexão direta entre a composição do solo e o sabor. O professor Brian Ford da Universidade de Lancaster, Reino Unido, cita uma série de estudos demonstrando que a videira produz diferentes conjuntos de metabolitos, dependendo da presença ou ausência de certos macro e micronutrientes no solo sendo necessário estabelecer a ligação destes metabolitos com sabores na taça.
O professor Malcom Bennett e o Dr. Martin Broadley da Universidade de Nottingham no Reino Unido também fizeram pesquisas mostrando que a deficiência de fosfato no solo impacta na expressão genética da videira. Os genes direcionam a produção metabólica. Mais uma vez, é necessário estabelecer a ligação de metabolitos ou a falta deles com sabores na taça.”
Sem dúvidas, o tema é muito polêmico e gera inúmeras discussões. No entanto, para finalizar a questão, vou publicar um texto escrito pelo respeitado sommelier Guilherme Corrêa, que inclusive já foi meu professor, e vai bem ao encontro do que o Blog Vinho Tinto pensa sobre o assunto. Confira:
Em defesa da mineralidade
Em primeiro lugar, percebo e concordo que a videira não absorve e transmite a mineralidade geológica do solo às uvas e consequentemente ao vinho. A planta é capaz de absorver somente pequenas quantidades de íons minerais ou nutrientes, conforme explicam os fisiologistas de plantas e, numa concentração final de aproximadamente 0,2% nos vinhos, não tendo sabor absolutamente de nada. Tive uma formação cartesiana em algumas das melhores escolas de vinho do mundo e isto é muito claro para mim.
Em segundo lugar, paradoxalmente, a mineralidade geológica (das pedras e solos dos vinhedos) existe nos vinhos. Isso é óbvio. Reconheço, assim como outros sommeliers e provadores profissionais, o solo nos aromas, nos sabores e na textura, mesmo que em provas às cegas. Se o solo fosse apenas um substrato de ancoragem das videiras, que influenciasse apenas na hidrologia, no fornecimento de nutrientes básicos à sua subsistência e consequentemente no seu vigor vegetativo, tanto faz se o Douro fosse assente no xisto ou no granito. Mas sabemos muito bem a gigantesca diferença dos vinhos que nascem no xisto grauváquico da região, e percebemos muito bem essa mineralidade nos aromas e sabores dos seus grandes vinhos.
O fato de a ciência não explicar algo não quer dizer que esse algo não exista. Não explicamos o Big Bang, mas nem por isso o Universo não deixa de existir. Não sabemos exatamente porque razão os vinhos dos Açores carregam um poderoso aroma e sabor de pedra-pomes, mas até o provador mais inexperiente consegue senti-lo. Da mesma forma, os aromas de ardósia serrada dos Riesling do Mosel, os aromas de giz de um Chablis, de sílica friccionada de um Pouilly-Fumé, de pedra calcária molhada de um Vitovska do Carso, de cantos rodados ao sol num Bordeaux, de pó de granito de um Nebbiolo da Valtellina. Se tudo na vida fosse plenamente explicado pela ciência, ela perderia uma parte do seu encanto, e o vinho, o seu mistério.