Pascal Marty, renomado enólogo francês, é uma figura proeminente no universo vitivinícola. Com anos de experiência na célebre vinícola francesa Baron Philippe de Rothschild S.A., ele foi escolhido para coordenar dois grandes projetos que simplesmente transformaram a História do vinho no Novo Mundo. Primeiro, o Opus One na California, em parceria com Robert Mondavi; e o segundo, o Almaviva, no Chile, em parceria com a Concha y Toro. Também prestou consultoria para vinícolas em diversas partes do mundo e movido pela paixão e inquietude de produzir vinhos autênticos, em 2008 fundou sua própria vinícola no Chile, a Vinã Marty.
Nessa entrevista, Pascal conta como decidiu se tornar enólogo, detalha um pouco dos projetos Opus One e Alma Viva e também fala sobre os vinhos que produz atualmente. Além disso, ele também aborda o futuro dos vinhos no mundo.
Confira abaixo a íntegra da entrevista exclusiva realizada pela jornalista Etiene Carvalho com esse profissional fascinante.
Etiene Carvalho – Como foi que você decidiu ser enólogo?
No final dos anos 70, meu pai cansou da vida agitada de Paris, mudou-se para o Sul da França onde adquiriu uma fábrica de rolhas. Na época, eu muito jovem, abandonei meus estudos e comecei a trabalhar com ele. Naquele tempo eu sonhava ser piloto ou engenheiro de avião e não tinha a menor ideia do que era a Enologia. Após um ano de trabalho em conjunto, um evento determinante acabou por direcionar o meu futuro profissional. Fui enviado como representante da empresa para participar de um workshop sobre engarrafamento e rolhas. Os palestrantes eram todos enólogos e, durante dois dias, assisti às apresentações e fiquei simplesmente fascinado. Percebi que fazer vinho tinha muito de científico. Eles falavam de tecnologia, maquinário, levedura, microscópio etc. Após esse evento, eu tive a certeza de que queria ser um enólogo. Pouco tempo depois, conclui meus estudos que estavam parados e, em seguida, enviei meus formulários para diversas Escolas de Enologia na França. Tive a grata surpresa de ser aceito para estudar no Instituto de Enologia de Bordeaux.
Etiene Carvallho – Durante seu curso de Enologia você fez um estágio nos Estados Unidos, não foi? Como foi estudar em Bordeaux e estagiar na Califórnia?
Em 1981 passei seis meses na Califórnia para realizar um estágio na área. Nessa época, os Estados Unidos eram muito pouco reconhecidos na produção de vinhos. Mas, eu sempre fui um pouco rebelde, e apesar de meus professores na época me dizerem que eu estava louco por deixar Bordeaux para estagiar na Califórnia, eu insisti e fui trabalhar por seis meses em uma pequena vinícola nos EUA. Lá, aprendi muitas práticas diferentes das adotadas na França e, principalmente, aprimorei meu inglês, já que, naquela época, não havia muitos enólogos fluentes nesse idioma. Esse estágio foi algo que acabou fazendo muita diferença na minha vida profissional.
Etiene Carvalho – E a sua tese sobre cortiça no final dos seus estudos de Enologia também foi importante para a sua carreira internacional não é mesmo?
Sim, em minha tese na universidade abordei a microbiologia da cortiça e as condições que possibilitam o engarrafamento com o menor risco possível, incluindo a seleção da cortiça e tudo o que diz respeito à sua qualidade. Um assunto pouco explorado na época e que fez sim diferença na minha carreira.
Em 1983, quando eu tinha 23 anos um professor me abordou perguntando se eu queria um emprego. Nessa época, eu estava envolvido na minha tese e respondi que já estava ocupado com ela. Mas o professor insistiu e perguntou se eu não queria um emprego de verdade, com pagamento ao final do mês (rsrsrss). Foi assim que me conectei com o Baron Philippe de Rothschild, que estava procurando justamente alguém que entendesse sobre controle de qualidade, que conhecesse pessoalmente os Estados Unidos e que também falasse inglês. Nessa época, existiam muito poucos enólogos na França e quase ninguém falava inglês. O que havia nos chateaux franceses eram os maitre de Chai (mestre de adegas) que iam passando suas experiências práticas de geração pra geração, algo bem tradicional. Mas, Rothschild sempre foi um precursor e, por isso, queria um enólogo na sua equipe. Assim fui contratado para cuidar da parte técnica da da produção de vinhos do Barão e também para cuidar de um projeto que ainda não existia, mas que estava nascendo nos Estados Unidos, o Opus One.
Etiene Carvalho – Fale um pouco sobre esse projeto Opus One.
As conversas entre o Barão Rothschild e Robert Mondavi começaram de maneira descompromissada. A origem do projeto foi uma “brincadeira entre dois velhos” (rsrsrsrs), não era um negócio. Eles começaram a produzir esse vinho antes mesmo de formalizarem a empresa, antes de entenderem como comercializariam o vinho. Quando comecei no projeto já existiam as safras 79 e 80 em garrafas e a 81 estava em barrica. No entanto, nem nome havia. Eu inclusive acho que essa foi a chave de êxito do Opus One, pois eles criaram um vinho de forma despretensiosa e sem pressão.Fizeram a principio para eles. O rótulo somente foi revelado no final de 1983 , quando haviam três safras engarrafadas. Quando eles perceberam que o projeto estava se expandindo, adquiriram novos vinhedos, e a vinícola foi finalmente construída, começando a operar oficialmente a partir de 1991. Fiquei no projeto até 1996, quando fui designado para coordenar outro projeto.
Etiene Carvalho – O Opus One foi um projeto que pode ser considerado um divisor de águas na História do vinhos californianos, certo?
Opus One foi o primeiro vinho franco-californiano e foi precursor de uma tendência que se disseminou na mesma época. Diferenciando-se das práticas predominantes, que eram focadas em vinhos de uma só casta, o Opus One se destacou como o primeiro vinho de blend significativo na Califórnia. Essa inovação representou uma mudança substancial na indústria. Atualmente, os melhores vinhos da Califórnia são, na maior parte das vezes, blends, evidenciando como a mistura permite a criação de vinhos distintos, repletos de caráter e complexidade. Enfim, Opus One elevou o padrão e marcou uma nova era na produção de vinhos na região.
Etiene Carvalho – E o projeto Almaviva?
Ao contrário do Opus One, o Almaviva foi desde o início um projeto vitivinícola comercial, com Concha y Toro contribuindo com um vinhedo e Baron Philippe de Rothschild com sua experiência. Assim como aconteceu em Napa, com o Opus One, Almaviva trouxe um conceito de vinho de mistura de alta qualidade, também estabelecendo um vinho super premium, um segmento de preços até então inexplorado no Chile. E eu fui enviado para liderar o projeto, com autonomia desde a seleção da uva até a vinificação.
Etiene Carvalho – Em 2008, você decidiu ter sua própria vinícola. Por quê?
Sim, eu fiquei 20 anos trabalhando com Rothschild. Poderia ter ficado em Alma Viva por mais tempo e ter uma vida mais tranquila, mas eu sempre fui inquieto. Também havia uma demanda grande por consultorias, que eu não poderia fazer por ser exclusivo de Rothschild. Quando saí da empresa, em 2003, me dediquei cinco anos a fazer assessoria a vinícolas em diversas partes do mundo. Até que em 2008, cansado de viajar, de passar muito tempo em aviões decidi montar um vinícola própria. Então, conversei com vários amigos meus sobre minha vontade de produzir um vinho chileno com alma francesa, californiana, ou seja, com tudo o que havia aprendido em diversos lugares do mundo. Muitos deles apostaram na ideia e me ajudaram a financiar a empresa Viña Marty. Escolhi o Chile, porque estava apaixonado pelo país. Lá procurei um lugar para criar meu pequeno vinhedo pessoal e encontrei três hectares de paraíso, onde construí a casa de minha família, e estabeleci um “clos” , um vinhedo fechado por um típico muro de pedras chileno, onde comecei a produzir meu próprio vinho – o Clos de Fa, hoje um ícone da Viña Marty.
Etiene Carvalho – Fale sobre os Vinhos de Vina Marty.
O vinho ícone da Viña Marty é o Clos de Fa, um blend a partir de vinhedos próprios em Maipo Alto. É uma combinação de Cabernet Sauvignon, Merlot e Syrah, envelhecida por 18 meses em barris de carvalho francês de primeiro uso. Produzida inteiramente à mão, desde a colheita até a rotulagem. Esse vinho é muito especial e feito em quantidade limitada, mantendo altos padrões de qualidade.
Na sequência, existe a linha Ser, que é o segundo vinho do Clos de Fa. Na verdade são os vinhos que não foram usados na mistura e que foram engarrafados separadamente como varietais (Cabernet, Merlot e Syrah); eles passam pelo mesmo processo de vinificação do Clos de Fa.
Temos também o Corazón de Indio. A história desse vinho associa-se a montanhas da Cordilheira dos Andes, que podem ser vistas do local das vinhas. No horizonte aparece o perfil de um índio, esculpido em pedra: rosto, pescoço e tronco, além de um grande coração. Acreditamos que ele protege os férteis solos da região do Vale de Maipo. O vinho é uma mistura de Cabernet Sauvignon, Carménère e Syrah.
Já abaixo de Corazón del Indio está a linha Pirca, o segundo vinho de Corazón del Indio, onde temos quatro varietais: Cabernet Sauvignon, Carménère, Syrah e Chardonnay. Especialmente também há o vinho Goutte d´Argent, um projeto inovador, que utiliza leveduras de saquê em sua produção, e outros como o Chaka, o Mariposa Alegre e o Pacha. Já as linhas de maior volume são: Ilaia e Love, vinhos de mistura, um tinto, um branco e um rosé.
Etiene Carvalho – Como você enxerga o futuro do vinho no mundo?
O vinho que conhecemos até então não vai existir mais. As mudanças climáticas estão ficando evidentes a cada dia. Creio que não há volta. Para te dar um exemplo, o vinho Mouton Rothschild 1986 tem 13,5% de álcool. Isso porque 86 foi uma colheita histórica em termos de maturação. Nessa época, a uva obteve 11,5% de álcool natural, tendo o resto sido chaptalizado, como permite a legislação. Hoje em dia, o vinho de Bordeaux tem 14% ou 14,5% de álcool sem chaptalização. Ou seja, em 20 anos ganharam 40% de açúcar em função do calor. O mesmo acontece quando você toma um Grand Cru Saint Emilion de hoje e percebe que ele não tem nada a ver com o Grand Cru de 20 anos atrás. Atualmente, esses vinhos estão muito mais perto dos que existem aqui no Novo Mundo, com caráter mais maduro, mais frutado e com cerca 14% de álcool. Na verdade, eu não sei onde isso vai dar… É certo que teremos de trabalhar muito nos vinhedos para conviver com essa mudança climática e toda a experiência e tecnologia também vão fazer a diferença. Enfim, durante muito tempo tratamos a videira de forma a garantir mais tanino e corpo nos vinhos. Agora teremos de começar a fazer justamente o contrário…